quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Porque poeta não morre na segunda estofre



Amigo Poeta,


Imaginei-me lendo uma coisa dessas. Imaginei como num sonho, eu lendo por tabela, no jornal do companheiro do lado, a tua morte tão trágica como inesperada, mas ainda assim, digna de um poeta. No sonho, eu primeiro não acreditaria, pediria o jornal para ler com mais calma, para confirmar endereço, tinteiro, a garrafa de vinho, o cinzeiro. Tudo fora do lugar. E tudo teu.

Eu me imagino sentando na calçada, lamentando que há muito não o via, não bebíamos e falávamos da vida e do amor, ou da morte e do desassossego. Iria pensar tristemente que não fui ao show como havia lhe prometido, que não tinha notícias tuas e mal as procurava saber, apenas tendo breves relatos de nossos amigos em comum. Mas a verdade é que eu pensava que estavas tão bem em tua felicidade de fotografia, mas eu devia saber que fotografias sempre se desgastam. Mas eu pensava que tu estavas tão bem em tua felicidade de novela, mas eu devia saber que novelas são de mentira.

Então eu pensaria que se fosse à outra época eu ira beber no teu túmulo, iria recitar poesia até amanhecer. Mas poeta, vá lá, como podes morrer na segunda estrofe?

Faça do corte profundo um caminho, que depois de costurado, ponto a ponto, cicatriza numa estrada torta, que mesmo tênue e sensível você terá como referência de por onde passou e para onde irá.

E do sangue que se esvaiu, manchando as folhas de papel, faça tinta. Não lhe direi que você não há de ficar pálido, ficará. Sem cor alguma e quase tão vazio quanto a ultima garrafa de vinho que esvaziou. Mas do sangue, das lágrimas e da dor, redescubra a cor, seus novos tons e combinações.

Porque poeta não morre, senão para reviver, te levantas daí e me contas as novas, como vai teu amigo barbeiro, como sopra os ventos por essas bandas.


Eu estive pensando: amor é bicho traiçoeiro. Quando ele bate na porta, às vezes fingimos não ouvir, e então, ele entra quieto. Fica ali meio de canto e muitos de nós persistentemente fingimos não vê-lo, como se ele nem estivesse por ali. Com o tempo o amor sai do canto, abre uma janela e deixa entrar uma brisa fresca, daquelas de fim de tarde, que só com muita força podemos fingir não sentir. E depois de mais um tempo, lá está o amor, no meio da sala, mudando os móveis de lugar, cantarolando uma música, pendurando cortinas nas janelas. E de imperceptível, ele se torna imprescindível.


Agora eu te pergunto: o que fazer quando a janela não abre e a brisa não entra, a cortina não tremula e os móveis, ah os móveis! O que fazer quando eles ficam a te fitar com pena?

Um forte abraço,


Desconexo.

2 comentários:

  1. LINDO TEXTO...
    DESCONEXO... MAS MARAVILHOSO
    OBRIGADA PELA LEITURA...
    UM FELIZ TODO ANO NOVO...
    ABÇOS

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  2. Há já muito que não lia algo assim, que me enchesse os olhos e a alma! QUanto a mim, poeta escondida, disfarçada, oculta entre os arbustos densos do nefasto dia-a-dia, este texto é PERFEITO. Brota de uma essência que julguei perdida. Transmite em plenitude.Deixa-nos a desejar ser esse poeta que não morre na segunda estrofe. De desconexo nada tem a não ser o facto de nos desconectar da dura realidade que é não sermos nós mesmos. Vou visita-lo mais vezes agradecendo, desde já, que continue.

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